A escritora Rose Marie Muraro foi destaque do Encontro Estadual do Proler de Goiás e da Semana Nacional do Livro e da Biblioteca, em outubro de 2000, quando tive a oportunidade de entrevistá-la. Os eventos contaram com o brilho da inteligência e da sensibilidade desta intelectual eleita nove vezes A Mulher do Ano, pelo Conselho Nacional da Mulher e que, em 2005, foi nomeada Patrona do Feminismo Brasileiro, pelo Congresso Nacional. Em Goiânia, Rose Marie Muraro fez palestra e lançou o livro Textos da Fogueira, publicado pela Editora Letra Viva. O público conheceu de perto a autora, admirada por sua capacidade de superação e que, apesar de quase cega, atuou com êxito, como escritora e editora, participando de movimentos sociais importantes como a Teologia da Libertação.
Durante 17 anos, ela trabalhou ao lado de Leonardo Boff, na Editora Vozes, de onde foi expulsa por causa de suas idéias: em 1986, foi afastada da pelo Papa, depois de publicar Por uma Erótica Cristã.
Formada em Física, natural do Rio de Janeiro, Rose Marie Muraro nasceu em 1930, tem cinco filhos e 12 netos. Além de escrever obras instigantes, também se projetou como editora e palestrante em dezenas de instituições de ensino, nos EUA. Hoje, sua bibliografia reúne mais de 30 livros.
Nesta entrevista exclusiva, a escritora fala sobre sexualidade e poder. Otimista, considera que a nova geração tem uma nova estrutura psíquica e que um mundo novo está nascendo. Segundo ela, o pós-patriarcado já chegou.
NT – O livro Textos da Fogueira relaciona sexualidade e poder. De
que forma se dá essa relação?
RM - Há oito mil anos, a sexualidade é o pior dos pecados. Desde o Gê
nesis, quando Eva separou o homem de Deus por causa do ato sexual, o
prazer é considerado o pior dos pecados.
E não é só o cristianismo, é em todas as culturas. A mulher é considerada
a grande pecadora e, portanto, a escrava. Aquela que tem de
fazer o duplo trabalho. A culpa do homem é uma só: ter desobedecido
a Deus. A mulher tem duas culpas, ter desobedecido e ter feito o
homem desobedecer. Por isso, ela é mais culpada e tem de ser mais
castigada.
NT – Como isto se revela historicamente?
RM – Enquanto a sexualidade era o maior dos pecados, o poder era
considerado vindo do sagrado. Toda pessoa que está no poder é Deus,
filho de Deus ou uma encarnação de Deus. O poder tem direito divino,
como nos reinados do cristianismo. Então, se o poder é sagrado, toda
opressão e guerra são justas.
Onde está o pecado? Na sexualidade. Isso vem vindo até a Idade Média,
quando se chega ao fundo do inferno, com a caça às bruxas.
Todas as mulheres que têm o imundo orgasmo, entre aspas, como o inquisidor
diz, são cúmplices de satanás. Aí a sexualidade ficou satanizada,
começou a perseguição às bruxas que não tem paralelo na história.
NT - De que forma o tema é abordado no livro?
RM - A metade deste livro eu dedico à história Martelo das Feiticeiras,
que é o livro mais sinistro de todos os tempos. Eu ponho os demônios
literalmente para fora. Mostro como eles tinham a noção da mulher
como causa de todos os pecados.
Chegam a dizer que se não existisse a mulher, o coito seria muito mais
interessante. Coisas neste gênero. Que a mulher é a grande pecadora,
que Jesus quis nascer homem, que a mulher não pode ser reta porque
nasceu de uma costela torta de Adão...
NT – São as raízes do machismo?
RM - Do patriarcado. O machismo é baseado nisso. São os problemas de
fundo da condição da mulher. Os textos do Martelo são fantasticamente
terríveis. Mostram que a mulher copula com satanás.
Diziam, por exemplo, que as bruxas ao serem torturadas não choravam
e que era o demônio quem colocava água em seus olhos. Por isso o meu
livro se chama Textos da Fogueira.
Eu me defino como bruxa, como mulher orgástica e independente.
Como todas nós, hoje. Se o inquisidor voltasse agora teria de matar a
metade da humanidade. Todo mundo trabalha fora hoje e tem orgasmo.
NT - Como foi esse processo de libertação dos preconceitos?
RM - Este livro Martelo das Feiticeiras, o mais sinistro de todos os tempos,
que tive a honra de publicar no Brasil, gerou no século 19 a libertação
da mulher e muito mais no século 20.
Por causa desse livro, que influenciou muito, as mulheres entraram em
pânico. Não podiam aprender a ler, não herdavam... No século 19, na
revolução industrial começam a trabalhar... E no século 20, querem a
metade do poder.
Quando o feminismo emerge como sujeito da história, a sexualidade
deixa de ser pecado. Então é feita uma leitura do Evangelho mostrando
que Nosso Senhor Jesus Cristo vivia entre mulheres promíscuas, adúlteras,
prostitutas. No meio dos sodomitas. Todos estes, ele dizia, que iriam
para o céu antes dos outros.
NT – Sexo e poder estão assim tão intimamente relacionados?
RM – Tudo isso é uma metáfora para mostrar que a satanização da sexualidade
através do sagrado é para dizer que o poder, o genocídio e a
guerra são justos.
As piores guerras do todos os tempos são as guerras religiosas, do sagrado.
Se você tirar o caráter do pecado da sexualidade, imediatamente o
poder aparece com a face satânica. Daí essa resistência à globalização, à
virada do Brasil para a esquerda em busca de justiça.
As pessoas não podem mais chamar o sagrado como desculpa para fazer
genocídio e guerra. Eu mostro no livro que satanás é o poder e não
a sexualidade.
NT – Dizem que as pessoas que têm mais poder são mais dotadas de
serotonina, a substância que proporciona prazer. Isso seria uma confirmação
de que o poder é afrodisíaco?
RM – Não sei se as pessoas que estão no poder têm mais serotonina.
Isso eu quero aprender. Olha que eu entendo à beça de química no cérebro.
Não sabia tinham mais serotonina, sei que têm mais adrenalina.
São mais ansiosas, estressadas...
NT – Como avalia a situação da mulher hoje?
RM – Quando a sexualidade era sombra, o poder era luz. Agora que a
sexualidade é a luz, o poder vai para a sombra. O poder tem a ver essencialmente
com a condição da mulher.
NT - Depois da revolução sexual dos anos 60, com o surgimento da pílula,
a mulher conquistou mais liberdade para assumir seus desejos.
Mas o que se vê ainda, em algumas regiões, é uma retomada de valores
tradicionais, a manutenção da dicotomia santa-prostituta... Por quê?
RM - Isso só ocorre nas sociedades mais fechadas do Brasil. Mas você vê
mulheres com possibilidade de se candidatarem à Presidência da República,
tanto no Brasil quanto nos EUA.
Os EUA têm quase 50 milhões de feministas, elas são quase a metade
do poder. No Brasil, são 10 mil e ganhamos 60% pelo mesmo trabalho
que o homem faz. Ainda somos muito atrasados. Embora tenhamos um
modelo dos excluídos que é único no mundo, do MST, das Comunidades
de Base que estão organizando aqueles que o sistema joga para fora.
NT – O aborto ainda é um tabu na sociedade contemporânea. Nas
eleições, por exemplo, o discurso conservador tira vantagens da condenação
do aborto. De que forma os movimentos de liberação da
mulher tratam a questão?
RM – A Igreja aceitou o aborto por 15 séculos dizendo que enquanto
não houvesse alma no feto – no feto masculino era aos 40 dias e no feto
feminino, aos 80 dias – o aborto não era pecado. Só era pecado mortal
quando o feto estivesse feito. Isso foi do século 4 ao 19.
Só quando a Igreja perdeu os Estados pontifícios, quando perdeu o poder
temporal o aborto voltou a ser crime hediondo. O mesmo ocorreu
com os protestantes. A partir de quando eles tiveram poder, no século
19, abriram espaço para o aborto.
O aborto é um problema de poder, de controle da sexualidade feminina.
Não é um problema teológico. Ainda há muita discussão sobre quando
tem alma, sobre o que é ser pessoa. Quem aceita a pena de morte não
tem autoridade moral para ser contra o aborto.
Toda patroa que pede empregada sem filho, se a empregada aborta, essa
patroa é a culpada. Se uma sociedade pede para uma mulher não conceber,
se no seu emprego pede atestado de laqueadura de trompas, o culpado
pelo genocídio é a empresa. Não é da mulher, a culpa é da sociedade
inteira!
E quem não tiver pecado que atire a primeira pedra.
NT – Quais os movimentos fortes de liberação da mulher no País,
hoje?
RM – As mulheres dos partidos de esquerda se definem hoje como feministas.
O feminismo nada mais é do que a organização do feminino.
É um sindicato, nada mais. E como diziam que os sindicalistas comiam
criancinhas, dizem que as feministas comem criancinhas. É porque elas
querem acabar com o patriarcado.
NT – O capítulo final de seu novo livro é sobre o pós-patriarcado. A
senhora fala de uma nova estrutura psíquica de homens e mulheres.
O que está acontecendo?
RM – A estrutura psíquica do patriarcado é assim: o pai lá em cima, fazendo
dinheiro, e a mãe embaixo, fazendo todo serviço de casa. O pai
mandando, a mãe obedecendo. O pai batendo, a mãe apanhando.
Então, o menino se identifica com o opressor e a menina com a oprimida.
Quando a mãe passa a trabalhar, não há mais essa estrutura. O pai
ajuda a cuidar dos filhos, que não veem mais a relação opressor-oprimida.
NT – Darcy Ribeiro dizia que no Brasil as mulheres eram as cabeças
da família há muitas décadas. Como o patriarcado está sobrevivendo?
RM – Já estamos no pós-patriarcado. Ele começa só quando a tecnologia
estava suficientemente desenvolvida para existir o trabalho do homem
na rua e o da mulher em casa.
Isso foi há oito mil anos. A mulher fica dependente material e psicologicamente
do homem. Agora acaba o patriarcado, porque para cada homem
que trabalha existe uma mulher que trabalha.
O pós-patriarcado começou há uns 25 anos. Mas é preciso mudar o
mundo para isso. É preciso mudar as leis, o Estado. Transformar o
meio ambiente. Se a mulher não atuar, acaba a espécie, porque a mulher
foi socializada no patriarcado para ser altruísta e o homem para
ser egoísta.
Agora isso se rompe. Quando não existe dominador, nem dominada, os
dois voltam a ser altruístas, como no mundo antigo. Daqui a uma geração,
não tenho dúvida, teremos a metade do poder, já está muito avançado
esse processo.
NT – Hoje a mulher tem o poder econômico e meios de concepção
que poderiam assegurar acesso mais livre ao sexo. No entanto, isso
não funciona. De que maneira o desejo pode ser assumido de forma
mais igualitária?
RM – Isso ocorre nas sociedades mais fechadas. No Rio de Janeiro e em
São Paulo, por exemplo, a mulher tem acesso livre ao sexo sim, nem precisava
tanto. A mulher tem de trabalhar a autoestima.
NT – Até que ponto o desejo sexual está vinculado à afetividade?
RM – Tudo é um problema de autoestima. Imagine se as norte-americanas
têm problemas...
NT – Há uma forma de a mulher assumir sua sexualidade sem culpa?
RM – Tem de haver. Só com alta autoestima. Só constatando que a sexualidade
não é pecado e que a culpa é uma fantasia infantil. A gente sabe
isso desde Freud.
Nas religiões, a culpa se pagava com oferendas, depois com sacrifícios
humanos. No cristianismo, só pode ser paga com o próprio sacrifício,
depois da morte. A gente descobriu no século 19 que a culpa é infantil e,
com o feminismo, que a culpa está com os sinais trocados.
Esta entrevista faz parte do livro Incondicionalmente Livre, em breve, nas melhores livrarias do Brasil.