por Nádia Timm
“Cada livro é uma nova batalha”, diz Flávio Carneiro, por telefone. O
escritor goiano estava prestes a lançar O Campeonato, na Livraria da Travessa
de Ipanema, no Rio de Janeiro, onde residia há 20 anos. Era agosto
de 2002.
Com seis livros e vários prêmios, o autor que começou a publicar aos
24 anos, nesta entrevista fala sobre questões ligadas à produção do romance
policial, no Brasil e no mundo.
Flávio Carneiro que também é professor de Literatura, não esconde
a ligação afetiva com Goiás, aborda os rumos da Literatura Contemporânea
e critica a obra de Paulo Coelho, que tinha acabado de ser eleito imortal da
Academia Brasileira de Letras.
NT - Os personagens de O Campeonato são leitores vorazes e as citações
do mundo literário confundem-se com a realidade. Que relação há entre
o escritor e o professor de literatura?
FC - Escrever e ensinar são duas coisas que não combinam. Quando escrevo,
não quero ensinar nada. Quero apenas contar uma história, da melhor
maneira possível. Claro que essa história pode melhorar a vida das pessoas,
mas isso é consequência. As citações estão integradas ao enredo...
O escritor que parte do princípio de que a Literatura tem algo a ensinar devia
mudar de profissão, ou então escrever livros de autoajuda. Se há citações
do mundo literário no meu romance é porque o personagem é um leitor, e
as citações aparecem. Não que eu queira dar uma de professor disfarçado
de romancista, mas porque achei interessante o personagem ser assim.
NT - Que lição a Literatura proporciona?
FC - Acho que o professor de Literatura devia aprender algo com a própria
Literatura, aprender a lidar com o imprevisível, por exemplo. Então, o meu
lado professor tem muito do lado escritor, dou aula pensando em trabalhar
o imaginário dos alunos e não em dar respostas prontas. Isso não é nada
fácil, porque os alunos muitas vezes preferem respostas prontas, mas aí já
é outra história.
NT - Você substitui a figura clássica do detetive por um jovem desempregado,
com dificuldades afetivas. A alteração da personagem típica do
romance policial tradicional é característica da nova geração? Por que
ocorre?
FC - A mudança do perfil do detetive clássico para o moderno surge já
nos anos 30, nos Estados Unidos. É a época da grande crise americana,
da depressão econômica, da lei seca, da perseguição política, etc. E toda
essa atmosfera acaba tornando impossível a existência de um detetive como
Sherlock, por exemplo, em cujas histórias o bem sempre vence o mal.
No romance policial americano dos anos 30, o detetive é um sujeito beberrão,
que fuma muito, conhece os marginais e as prostitutas, vive num
quarto imundo num bairro pobre. É a época de outro tipo de detetive, o
Sam Spade, criado por Hammett.
NT - E no Brasil?
FC - No Brasil, a narrativa policial de boa qualidade surge apenas nos anos
70, com Rubem Fonseca, e, é claro, o modelo de detetive será justamente
Spade, não Sherlock, já que as condições do país tinham, e têm, muito mais
a ver com o ambiente americano dos anos 30 do que com a Inglaterra vitoriana
de Sherlock.
NT- Garcia-Roza é best seller. Como avalia o “boom” do romance policial
tupiniquim, no final dos anos 90?
FC - A narrativa policial sempre teve um grande número de leitores, desde
o seu surgimento, com Poe, no século 19. Na ficção dos anos 80 pra cá, a
narrativa policial ganhou novo contorno, com histórias que buscam atingir
dois níveis de leitura: o do leitor comum, interessado apenas no enredo, e
o do leitor mais sofisticado, que busca também um texto mais inteligente e
criativo, e, às vezes, mais culto também.
NT - Quais exemplos de linguagem apurada?
FC - Autores como Rubem Fonseca, Garcia-Roza, Luis Fernando Veríssimo,
Rubens Figueiredo, entre outros, descobriram que a ficção policial
oferece essa riqueza: ser inteligente sem ser elitista. Jorge Luis Borges, um
escritor argentino que é, sem dúvida, uma das minhas principais referências,
já sabia disso há muito tempo.
É dele um conto policial nesse estilo, simples e genial, escrito nos anos 40:
O Jardim de Caminhos que se Bifurcam. Borges, e também Poe, são autores
sofisticados, têm uma obra carregada de erudição e, no entanto escreveram
contos policiais. A produção atual segue por aí, com os necessários ajustes
de nossa época, claro.
NT – Por que escolheu este gênero?
FC - Sempre gostei de narrativa policial, sobretudo a praticada pelos autores
citados. No meu livro Da Matriz ao Beco e Depois (Rocco, 1994), há um
longo conto policial. Sempre quis, um dia, escrever um romance policial,
só estava esperando a história chegar. Ela demorou um pouco, mas chegou.
NT - Qual a sua relação com Goiás?
FC - Nasci em Goiânia e duas ou três vezes por ano passo uma temporada
na casa dos meus pais, que moram aí, e também meus irmãos, tios, sobrinhos
etc. Alguns parentes moram em Brasília.
Tenho uma ligação muito forte com Goiás e, em especial, com Goiânia. Sou
meio como o índio do poema da Cora Coralina, O Palácio dos Arcos, que
vivia dividido entre duas culturas, no meu caso a de Goiás e a do Rio, para
onde vim em 81.
A gente acaba tendo que optar por viver nessa ou naquela cidade e optei
pelo Rio por questões profissionais. Depois acabei fazendo amigos, me casei,
minha mulher tem um filho lindo que considero também como meu
filho, e então hoje tento conviver amigavelmente com as duas cidades, já
que não posso nem quero abrir mão de nenhuma delas.
NT - Acompanha a produção literária em Goiás? Qual sua avaliação?
FC - Tenho acompanhado pouco. Conheço poucos autores, os já canônicos
Bernardo Élis, Cora Coralina e José J. Veiga, e os de gerações mais recentes,
como o Dilermano, o Brasigóis, o Goiamérico, o Miguel Jorge. Gosto muito de
todos eles, e acho que fazem uma literatura de alto nível, para além do regional.
Infelizmente, o mercado editorial privilegia centros maiores, dificultando o
acesso do grande público aos livros desses autores e de outros, da novíssima
geração, que confesso não conhecer ainda.
NT - O que achou de Paulo Coelho ser eleito imortal?
FC - Normal. A Academia Brasileira de Letras nunca foi uma casa exclusiva de
grandes escritores. Aliás, nem é preciso ser escritor para ser acadêmico. Getúlio
Vargas, por exemplo, é da ABL. É um grupo bastante eclético, e fico imaginando
o que Guimarães Rosa teria a conversar com o Sarney, por exemplo.
Paulo Coelho não é um escritor, no sentido de ficcionista. A ficção, para ele,
é pretexto para ensinamentos filosóficos. Não gosto de livros assim.
A literatura não deve servir para outros fins que não seja a leitura pura
e simples. Não deve servir para ensinar nada, não deve servir para levar
alguém a votar nesse ou naquele partido, a ser ateu ou crente, ou para provocar
uma revolta armada, nada disso.
NT - O quanto o engajamento prejudica a qualidade?
FC - O Paulo Leminski dizia que a poesia é um inutensílio. Concordo com ele.
A literatura não serve pra nada e, justamente por não ter uma função prática, é
que ela é imprescindível, fundamental.
Fico meio deprimido quando vejo tanta gente gostando de Paulo Coelho, não
porque ele seja ruim. Acho que ele é ruim, escreve muito mal. Mas não é por
isso, tem muita gente por aí escrevendo mal e nem, por isso, me entristeço.
O que me chateia é que ele usa a literatura para passar mensagens, para
ensinar alguma coisa, e isso é o que pode haver de pior para a Literatura.
Se você quer matar a Literatura, coloque-a a serviço da moral, da ética, da
política ou do que quer que seja. É um processo de emburrecimento do
leitor, de adestramento, de absoluta imbecilização. É triste ver a literatura
servindo a esse propósito.
Entrevista publicada no Jornal O Popular, em 18 de Agosto de 2002.
*Este texto faz parte do livro "Era Uma Vez....... Outra Vez....... mais uma vez .......e mais outra.......", de Nádia Timm.
Dia 15 de dezembro de 2011
Lançamento de A ILHA
Bate-papo com Rogério Borges: 19:30h
Sessão de autógrafos: 20:30h
Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro
Rua 03, nº 1016 (esquina com Rua 09)
Centro
Goiânia