Alguém estudou na escola a existência de brasileiras
artistas, gênias, guerreiras, políticas ou cientistas importantes, influentes no
contexto social? Duvido. Citam poucas, pouquíssimas, quase nada.
No seu romance de estreia, publicado em 2002, A Mãe da Mãe da sua
Mãe e suas Filhas, pela Editora Globo, Maria José Silveira ousou inverter
essa tendência machista. A escritora deu vida e voz para vinte mulheres,
descendentes da primeira protagonista, uma índia Tupiniquim, revelando
bastidores, oferecendo possibilidades e a oportunidade para o papel da mulher
ser redimensionado, na história do Brasil.
Maria José da Silveira apresenta uma versão, a partir do universo
feminino. São personagens que viveram em diferentes épocas, vivenciaram
e atuaram em acontecimentos que marcaram o Brasil, desde a colonização
até o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
Importante lembrar a história profissional da autora que além de escritora
fez parte do comando da Editora Marco Zero. Tarimbada no mercado
editorial, ela surpreende quando o assunto chega ao baixo índice de leitura no
Brasil: “brasileiro gosta de ler sim, o problema é financeiro”, garante.
Maria José também demonstra seu amor às raízes: “Gosto de ser
goiana. Tenho discos de música sertaneja, quadros de pintores goianos,
adoro o Araguaia e a paisagem do Cerrado, me considero premiada quando
encontro uma grande boiada na estrada, e até meus filhos são fanáticos
por biscoito de queijo e pamonha”.
Natural de Jaraguá, a escritora passou grande parte de sua infância
e a adolescência em Goiânia. “Esses anos foram absolutamente marcantes.
Ninguém foge de si mesmo, muito menos um escritor. E eu não tenho mesmo
por que fugir, até pelo contrário: embora tenha vivido desde os 16,17
anos fora, sou goiana até debaixo d’água.
Embora de maneira um tanto inconsciente, a criação se dá a partir das
coisas que estão em você; é a elas que, mesmo sem se dar conta, você está constantemente
recorrendo. As pequenas e grandes coisas que vão formando uma
pessoa pela vida afora e a infância é o primeiro grande momento em que se
começa a armazenar essas experiências de vida. Assim, é inevitável que Goiás
tenha muito a ver com meu livro e, em algumas histórias, isso está claríssimo”.
Ela tenta imaginar a reação de quem mergulha no romance: “Sabe o
que eu gostaria que acontecesse com esse leitor hipotético, esse leitor ideal?
Que primeiro, claro, ele adorasse o livro e falasse dele para todos os seus
amigos. E, segundo, que pensasse nas histórias fascinantes que devem compor
a sua própria história.
As aventuras que devem ter vivido seus tetravós, sua primeira mãe
indígena, seu primeiro avô africano. É muito difícil reconstituir uma árvore
genealógica no Brasil, mas pode ser uma viagem curiosa e enriquecedora
imaginar quem foram e o que teria acontecido a nossos antepassados que
nos fizeram chegar até aqui”.
Depois de graduar em Comunicação, pela UnB, e em Antropologia,
pela Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru, Maria
José Silveira fez mestrado em Ciências Políticas, pela USP, e fundou, em
1980, a Editora Marco Zero, da qual foi diretora até 1998.
NT - Por que escolheu a perspectiva histórica?
MJS - Minha idéia, quando comecei a escrever o livro, foi tentar ver de
perto como poderia ter se dado concretamente a grande mistura de raças e
culturas que nos formou como brasileiros. Tentar imaginar como poderia
ter sido esse processo de formação e mistura de raças, histórias e aventuras
que nos trouxe até aqui. Gosto de pensar no meu livro como a descrição
desse processo de mudanças que, mal ou bem, resultou no que somos.
NT - E o enfoque a partir da vida de mulheres brasileiras?
MJS - Uma pesquisa relativamente recente da Universidade Federal de Minas
Gerais analisou o DNA do brasileiro e chegou a um resultado muito
interessante e até um pouco surpreendente: cerca de 60% dos brasileiros
brancos que vivem hoje descendem de mãe indígena ou negra. Dos brasileiros
brancos, veja bem, é surpreendente, porque se hoje até reconhecemos
que temos sangue negro nas veias - lembra do Fernando Henrique? - raras
vezes pensamos que devemos ter também sangue indígena. E esse sangue
indígena, ou africano, veio sobretudo através da mãe. É a nossa matrilinhagem
que é indígena ou negra. A contribuição europeia veio principalmente
pelo lado paterno.
NT - A miscigenação foi a vertente da obra?
MJS - Foi esse processo que eu quis ver de perto. Como o sangue indígena
foi se misturando com o português, com o negro, com o espanhol, holandês,
italiano, alemão, árabe, etc. Como isso realmente aconteceu. Ou, melhor
dizendo, como poderia ter acontecido, porque se trata de um romance
de ficção. Quem foi se encontrando com quem, quem foi casando com
quem, como viveram, quais eram seus grandes problemas. Como poderia
ter se dado, com detalhes, essa história que nos trouxe até aqui, neste país,
com essa mistura no sangue e na cultura.
NT - Como desenvolveu o enredo?
MJS - Tentando encontrar essas respostas, começo o romance com Inaiá,
indiazinha tupiniquim que nasce no dia 22 de abril de 1500 e tem uma filha
com um português, tripulante de um navio que comerciava Pau-Brasil. A
partir da primeira filha desse casal, vou seguindo suas descendentes, acompanhando
uma linhagem possível – entre milhares e milhares de outras –
que teriam resultado em uma brasileira ou um brasileiro hoje.
NT – Como criou as personagens?
MJS – Muitas pessoas têm me perguntado se algumas das vinte mulheres
do meu livro foram inspiradas em mulheres que realmente existiram. Não,
elas são todas imaginadas, personagens completamente fictícias. Mas é claro
que, para falar de tema tão abrangente, tive de fazer uma grande pesquisa
para recriar as diversas etapas históricas nas quais vivem meus personagens.
Até pensei que talvez precisasse de anos para realizar o projeto.
NT - Qual foi o material pesquisado?
MJS - Tive uma bela surpresa quando comecei a pesquisar e descobri que
nossos historiadores têm publicado coisas interessantíssimas a respeito de
todas essas épocas. A historiografia brasileira é na verdade muito rica, principalmente
a partir da história das mentalidades, com sua preocupação não
pelos grandes acontecimentos históricos, mas por temas específicos, o cotidiano
das pessoas, como viviam, o que faziam, etc.
Há um conjunto de livros de ensaios e pesquisas históricas muito interessantes,
escritos por vários estudiosos, cheios de detalhes riquíssimos. No
final, coloco uma pequena bibliografia, o que não é muito comum em trabalho
de ficção, mas senti que era necessário.
NT - Como sistematizou o trabalho?
MJS - Quando me pus a trabalhar, já tinha algumas personagens na cabeça.
Como Inaiá, a primeira, pois eu queria começar com uma índia tupiniquim,
e seu companheiro, claro, teria de ser um português. Eu queria dar
a esse primeiro casal alguns traços de uma espécie de mito de formação,
que correspondesse ao brevíssimo tempo de encantamento, que deve ter
sido mesmo muito breve, mas certamente aconteceu, no encontro de duas
culturas tão conflitantes. Por isso, porque a mistura dessas duas culturas a
médio e longo prazo foi tudo menos harmoniosa e idílica, esses dois personagens
teriam de ter uma vida curtíssima, eu já sabia mais ou menos o que
queria com eles.
NT - A personagem que viveu em Goiás é fictícia?
MJS - Outra figura que já estava na minha cabeça era a que vive em Goiás,
Jacira Antônia, coronela de uma fazenda do século 19. Eu queria também
que uma, mais recente, vivesse em Brasília, cidade de um fascínio que mereceria,
por si só, vários romances, e que vivesse a luta contra a ditadura
militar. Eu tinha, portanto, essas e outras personagens já delineadas, mas
não todas. Muitas foram nascendo a partir das pesquisas.
NT – Quais personagens surgiram assim?
MJS – Por exemplo, a que viveu em Pernambuco, na invasão dos holandeses,
no século dezessete, Maria Taioba. Dessa época da invasão dos holandeses,
eu sabia o que os não pernambucanos sabem, ou seja, muito pouco,
mas tive a sorte de encontrar os livros do Evaldo Cabral de Mello, que são
maravilhosos e ricos em detalhes. A partir do que fui conhecendo nesses
livros, pude criar essa personagem que acabou sendo uma das que tiveram
vida mais longa no romance.
NT - Quem mais nasceu de pesquisas?
MJS - Outra que nasceu das pesquisas foi a Açucena Brasília/Antônia Carlota,
a personagem com dois nomes, que viveu no auge das lutas pela independência.
Para sua mãe, adepta da brasilidade e da independência, a filha
deveria ter um nome típico brasileiro, um símbolo do país novo e rico que
nascia, mas o pai, reinol, insistia no nome português como prestígio e status.
Em torno desse conflito é que as coisas acontecem. Também foi a partir
das pesquisas que nasceu a família milionária do meu romance.
NT - O país continental está explícito nas referências regionais...
MJS - Outra questão que tive de resolver foi a da grande mobilidade geográfica
das personagens. Elas teriam de passar por várias regiões porque
nosso processo de formação foi o de colonização e ocupação de um vastíssimo
território. Principalmente, nos três primeiros séculos, o País estava
sendo descoberto e havia um grande deslocamento de populações.
As bandeiras, os ciclos do ouro e do gado, o desbravamento das matas, etc,
tudo isso trazia uma mobilidade populacional muito grande. Ao passar por
regiões diferentes, evidentemente, as personagens teriam de viver em paisagens,
circunstâncias e situações muito diversas. E, fosse onde estivessem,
estariam vivendo ou sofrendo as consequências dos momentos políticos
que o País foi vivendo. E foi assim que o romance foi tomando corpo.
NT - A participação da mulher não é pano de fundo. Há personagens
atuantes. Apesar do machismo, existe um traço de matriarcado na sociedade
brasileira?
MJS - A questão não é a do matriarcado, mas ao contrário, a da “invisibilidade”
da mulher na nossa história, embora já existam vários trabalhos
sobre o tema, apontando o que deveria ser óbvio: as mulheres sempre estiveram
presentes, e não como meras coadjuvantes, mas como parceiras
fundamentais em todos os momentos da nossa história.
As mães indígenas de nossas mães já estavam aqui quando os portugueses chegaram,
e estavam presentes em todos os momentos, como escravas ou mulheres
livres, mas sempre atuantes: na exploração do sertão, nas entradas e bandeiras,
nas fazendas de gado, no ciclo do ouro, nas lutas pela independência.
NT - Por quanto tempo você esteve à frente da Marco Zero? Como foi
sua experiência como editora?
MJS - Nós fundamos a Marco Zero, Márcio Souza, Felipe Lindoso e eu, em
1980. E ficamos até 1998, quando a vendemos, com um catálogo de mais de
400 títulos. Foi uma experiência formidável, embora sempre difícil porque
trabalhar com cultura é muito complicado num país onde até o mínimo
básico deixa tanto a desejar. Mas desses anos de trabalho com livros, uma
coisa para mim ficou clara: é uma falácia enorme o propalado chavão de
que o brasileiro não gosta de ler. Gosta, sim.
NT - O que falta?
MJS - O que falta ao brasileiro não é exatamente o gosto e o reconhecimento
da importância da leitura, mas dinheiro para comprar livros. E que
o governo faça a sua parte, tendo uma política cultural consequente, com
educação e bibliotecas públicas.
A grosso modo, a situação do livro no Brasil, e da cultura, de um modo
geral, só vai melhorar quando a renda do país for mais bem distribuída e
o cidadão comum tiver um salário que lhe permita passar também pelas
livrarias quando sair para fazer suas compras. Como aconteceu naquele
período do Plano Cruzado, quando de repente todo mundo ficou com uma
grana a mais no bolso e as editoras não sabiam o que fazer para dar conta
de tanta demanda. Foi um período muito curto, mas deu para botar alguns
mitos por terra.
NT - Você tem contato com Goiás, em especial com a produção literária
local?
MJS - Vou sempre a Goiânia, onde moram minha mãe, irmãos, parentes e
amigos, mas não posso dizer que acompanho a produção literária. Agora,
é claro que conheço e gosto de muitos autores goianos, desde os nossos
clássicos, Bernardo Élis, Cora Coralina, JJ. Veiga, como também Antônio
Moura, Carmo Bernardes, Ursulino Leão, Bariani Ortêncio, Gilberto Mendonça
Teles e Miguel Jorge.
Inclusive cheguei a publicar alguns desses autores pela Marco Zero, embora
não tanto como gostaria.
Tem um romance de uma goiana que li, menina, e faz parte dos meus livros
inesquecíveis, o Elos da Mesma Corrente, da Rosarita Fleury, que penso reler
qualquer dia desses. Guardo meu exemplar velhinho, que foi do meu
pai, na estante de minha casa.
A entrevista foi publicada no Jornal O Popular, em 11 de Junho de 2002.
*Este texto faz parte do livro "Era Uma Vez....... Outra Vez....... mais uma vez .......e mais outra.......", de Nádia Timm.