As crianças cantam em um orfanato, no Haiti.
Depois do terremoto, da tragédia, uma imagem de esperança e beleza. Antes, a tela mostrou dois corpos sob os escombros. Um pouco antes, no primeiro bloco do noticiário, a imagem de dezenas de cadáveres jogados por caminhões em uma vala comum. A triste cena emplacara as capas de jornais pelo mundo.
Cedo, Anna Galiano reviu uma matéria que tinha feito há alguns meses, antes do terremoto, para um programa dominical. A Repórter estrela assistiu às mães preparando biscoitos de barro, gostou de se ver tão bem. Agora a produção estava à procura daquelas personagens, queriam saber o que aconteceu com aquelas famílias, o que sobrou daquele lugar.
Parece que será apenas mais um dia de estresse, pensou e suspirou a Jornalista famosa. Era uma jovem bonita como uma boneca de desenho 3D, seu rosto não transparecia sua enorme carência afetiva, nem a voz revelava a intensidade de suas emoções. Tinha o perfil da profissional perfeita. Aparência impassível, bela.
No meio da manhã, Ele chegou com sua boina azul e naquele uniforme parecia um super-herói ou um deus. Mesmo com dor de cabeça, sentindo um mal-estar constante e a pressão da hora, mesmo assim, Anna teve aqueles segundos fatais de fantasia e ficou louca pelo rapaz. Caiu na armadilha. A Jornalista se apaixonou, comentavam. Amor impossível lhe disseram logo, entre risadas sacanas.
Cai na real, repetem mil vezes. Anna não acredita, deve ser intriga, maledicência de invejosos. Sente o corpo tremer, uma vertigem leve ao ouvir o nome dele ou o som da sua voz, ao longe, no comando da tropa. Homem inteligente e lindo. Imagina o primeiro encontro, a sensação do beijo, o que Ele diria para conquistá-la.
No devaneio, sonhando, vivia os poucos minutos de paz que o jornal e televisão lhe concediam. O mau cheiro, o calor, a sede a faziam acordar para a paisagem em escombros. Tinha pauta para cumprir, horário para ir ao ar. Não, Ele não é gay, podem morrer de rir, você estão com inveja. Era seu príncipe que finalmente tinha chegado, tinha certeza.
Mais um dia de luta contra a fome, tudo anotado no bloco, gravado, fotografado. Porém numa tarde, um susto, outro tremor de terra. Do acidente terrível com seu amor, só soube de madrugada, quando a acordaram para contar. Anna agora acha que a vida perdeu o sentido. Desespera ao pensar que ele, o Boina Azul, sua paixão, iria morrer.
Não morreu não. Um mês depois, Ele voltou ao Brasil e logo se envolveu em um escândalo numa boate. Anna ainda não quis acreditar. O comandante foi expulso dos Boina por ser viado, saiu nas capas, nos sites, espalharam a notícia, lhe disse a melhor amiga, se sentindo constrangida por ferí-la daquela forma. Sempre confiante, a Repórter respondeu que era uma conspiração de invejosos contra seu amado.
Na Internet, investiga. Descobriu onde Ele morava e para lá voou numa tarde terrível de chuva no Rio de Janeiro. De tardezinha, na enxurrada, encontrou a rua da Tijuca. Bateu na porta, sem avisar. Ele abriu, de short, sem blusa, sem a boina azul.
Anna tremia ao lhe estender a mão e pedir desculpas por chegar assim sem um telefonema mas precisava dizer pessoalmente o quanto era solidária e o quanto o considerava depois de tudo que viu e assistiu no Haiti e a força que ele tinha no comando daqueles homens naquele momento tão difícil e o quanto desconfiava dos interesses que ele havia contrariado e de que alguma força maligna oculta estava por trás de toda essa campanha de difamação pura calúnia infâmias que jogavam contra ele. Ufa!
Quando terminou o jorro de palavras ficou um silêncio imenso. Os olhos dele estatelados, brilhando. Estupefato, bobo, desentendido. Ela em êxtase. Aí, do quarto uma voz efeminada gritou: “Quem é Janjão? Mais que pizza mais demorada, benhê!”