Na imagem seguinte, com a lanterna, ele joga a luz ao léu e
mente que se emociona com a aproximação de outro bicho. Depois do flash
da cena, Leila não recorda de mais nada do que rolou na televisão, naquele
sábado. Ficou mergulhada nas lembranças das boas sensações do namoro e
carinhos de seu amor. Sentia tanta saudade.
Era uma vez uma moça que se sentia como aquela anta, jogada aos
pés do tal jornalista, prostrada por uma coçadinha. Era uma carente, capaz
de ficar de conversas bobas durante horas na Internet, ou na porta do prédio,
com a vizinha idosa, gagá, rindo das caduquices. Então, aconteceu a
tragédia das chuvas e o morro desabou na sua frente.
Centenas de vizinhos, entre eles duas amigas, desapareceram na
lama. Leila teves seu dia de fama quando, na entrevista da televisão, se realizou
contando sua vida de professora municipal e porque se sentia mais
uma vítima do sistema. Foi sorte escapar da avalanche de lama e lixo, mas
a casinha estava condenada e a moça anta foi parar no abrigo provisório,
instalado numa escola da favela.
Aí conheceu o padre. Era bonito, corpo atlético de horas na academia, tinha
um ar de bondade, achou ela. Sempre bem vestido, falando baixo e devagar, foi
conquistando a confiança e o coração de Leila. Mas era padre! Dizia para si mesma,
quando surgiam aquelas ideias românticas, depois da missa de domingo.
Aquele gostar proibido, pecado mortal, foi crescendo, logo vieram as
primeiras carícias sutis e o inferno de um puta, sentimento de culpa.
Era um impulso forte, porém contido, travado pelas armadilhas da
educação, recalcado por baixo da saia. Não ousaria ultrapassar o muro da
calcinha. Ficava imaginando, tocando de leve. Enquanto isso, o padre, que
não era santo, enchia os bolsos com os donativos das beatas. As mesmas
que caprichavam nos lanchinhos que serviam a ele, na proporção em que
confessavam e multiplicavam os desejos, excitadas com a beleza daquele
jovem representante de Deus.
Seduzidas, todas faziam coro em defesa do padre quando alguém sugeria
que ele não era muito macho. Aos homens, diziam, ele não enganava
com aquele jeito adocicado de falar, os gestos meio efeminados e o olhar
lânguido, emoldurado por longas pestanas que abriam e fechavam, lentamente,
quando o padre Luiz era o centro das atenções.
Padre Luís adorava isso, uma plateia cativa e aproveitava para ir além
dos sermões, soltava a voz, cantava como uma diva, ou melhor, um anjo.
Gostava muito de palestrar com certo oficial que, de vez em quando,
em algum domingo, aparecia e depois da missa monopolizava sua atenção.
Ele ia à paisana, mas mesmo assim, o ar perfilado de militar transparecia.
Nas confissões, repetia sempre que não queria embromar ninguém, mas
estava sempre envolvido com alguma mulher, queimando dinheiro e descarregando
em casa, em surras homéricas, sua raiva por ser levado no bico
mais uma vez.
Leila ficava ligada, ouvia partes das conversas, para ela o tal Capitão
era um tremendo malandro e o padre Luís, em sua ingenuidade, não percebia
que o esperto estava de olho nas esmolas. E como estava... Volta e meia
saía com os bolsos recheados, feliz, mais altivo e radiante, o peito arfante.
Explorava, à vontade, aquela alma caridosa.
Depois do assalto, o padreco ficava parado com a xícara de café nas
mãos, olhando sem enxergar as árvores do jardim, cheias de beija-flores.
No olhar vago, o brilho dos olhos ia mudando, a luz virava uma sombra,
logo o rosto estava transtornado, como se tivesse levado um soco na boca
do estômago. Durante o resto do dia não era o mesmo. Sem sorrir, agarrado
aos livros, mal cumprimentava as beatas de plantão, ali loucas para servirem
a Deus.
Um dia, o repórter das antas apareceu com uma bomba. Mais um
caso de pedofilia, e agora era próximo, com gente da comunidade. O padre
velho que havia abusado de uma geração de coroinhas tinha sido denunciado.
A coisa fervia, Leila correu para a Igreja para conversar com Deus e
com Luís.
Encontrou Luís acabado, disse que estava com dengue, muito indisposto
e a despachou logo da sacristia. Não queria o chazinho não, nem as
brevidades que ela fizera. Queria morrer. Não suportava mais a carga, a
culpa, o horror de sua vida. Mas isso não contou para ninguém.
Só falou com o próprio olhar que encarou no espelho do quarto. Se
sentia um padre de merda. O resto do dia passou fora, nos hospitais, em
visitas aos doentes. Não queria pensar, nem ouvir falar sobre aquele velho
viado, seu algoz na infância, a quem temia, odiava ainda e cada vez mais.
Pedia perdão por cada pensamento, assim arrastava correntes invisíveis,
mas pressentidas por Leila que o seguia pelas ruinhas e becos da favela.
No jornal da noite, na televisão, até o Papa apareceu. O Bispo disse
algo, ela ouviu de relance. Mais denúncias de abusos e Leila começou a cismar
que aquilo era um complô dos crentes, dos pastores que comandavam
seus rebanhos aos berros. No fundo, desejava que o padre largasse a batina
e viesse para seus braços. Seria muito feliz com aquele homem tão sensível
às dores do mundo, que entoava um canto inspirado e amava os seres com
uma intensidade que ela não encontrara em mais ninguém.
Será que é o fim da Igreja Católica? Embaixo dessa lama não sobreviverá,
achou. E lembrou as histórias de sua avó, contando sobre os padres
que a salvaram na segunda grande guerra, no século vinte. Recordava das
escolas onde estudou, rígidas, sagradas, com as irmãs sempre atentas para
que o pecado não invadisse suas vidas. Homem só daqui para cima, repetiam,
e ela jamais teria esquecido a voz firme da noviça. Nem de seus pensamentos,
da imaginação das estudantes cochichando que as freiras eram
carecas e lésbicas.
Aprendeu com as madres, o silêncio, o bordado nas tardes solitárias,
o gosto pela música, o medo de ser tocada, o pavor de sentir desejo, a vontade
de descobrir o prazer.
Na cruz, o corpo de um homem morto a assustara muito na infância.
O objeto de tortura e morte, no centro daquele palácio de sonhos, de
anjos voando pintados com delicadeza, com madonas brancas, porcelanas,
bonecas embalando o bebê-deus, cenas que a impressionaram para sempre.
Quando será que descobriu que Deus não mora mais ali? Nunca
morara, talvez. E jamais esteve encarcerado em algum templo ou coração
humano, conclui.
Talvez quando a primeira onda de lama levou uma parte de sua vida,
e na força daquela tempestade, percebera uma outra dimensão. Tudo poderia
acontecer, estava viva, talvez fosse isso. Quem sabe tenha limpado
tantos os cantos, embaixo, por dentro que soubera o vazio, o oco, onde
cabem as possibilidades? Nem julgar, nem condenar. A vida era estranha,
fora de controle.
Descobriu que sempre raciocinava sem lembrar do imponderável e
sempre era surpreendida por avalanches. Aquele padre de preto e olhar
morno era mais uma, mesmo assim, talvez fosse amor. Ou outra ilusão.
Nem ligou, nem temeu, nada é em vão, filosofou repetindo o refrão da canção
da moda. Amor é a resposta para todas as perguntas, até para as que
não vêm do coração.
E desligou a tevê.
*Esta história az parte do livro "Era Uma Vez....... Outra Vez....... mais uma vez .......e mais outra.......", de Nádia Timm.