Nádia Timm
Ele era feio, pobre, maconheiro. Mas estava com vinte seis e se achava dono do mundo. Para ele, tinha certeza, a vida seria diferente. Tinha um pau bem grande e isto garantia o sucesso com as fêmeas, em qualquer parte do mundo.
Não tinha estudo, tipo escola tradicional, mas era escolado na malandragem, tipo PHD em ócio desde os dezessete anos. Fazia pose de artista excêntrico, um ar blasé, e ia se dando bem. Naquela cidade do interior do Brasil, o suficiente era parecer. Parecer moderno. Parecer criativo. Parecer cosmopolita.
Madrugadas em festas dos burgueses, cocaína, êxtase. Uma noite, chegou Marisa. Ela repetiu o verso de Djavan: "eu não sei dançar tão devagar para te acompanhar". Ele achou massa, a pegou pela mão e saiu pela casa procurando um computador. Queria mostrar seu fotolog cheio de desenhos que fazia em guardanapos de botecos.
A garota se divertiu com o jeito dele, pretencioso e alegre. Logo estavam aos beijos e durante semanas vozes alegres ecoaram nas madrugadas frias, nas ruas e becos da cidadezinha, onde passeavam em namoro.
Logo também deixaram de lado a camisinha e Marisa engravidou.
Casaram numa chácara linda, numa cerimônia em estilo hippie, quer dizer, foi assim considerada, porque naquele lugarejo qualquer modernidade, mesmo as ultrapassadas, ainda eram consideradas modernas. O padre, o noivo e a noiva com batas coloridas, o repertório musical cantado pelos amigos, ao violão e guitarra, foi o hit que embalava a novela das sete.
Tudo nos conformes da lei da moda.
A lua-de-mel foi no Rio de Janeiro e São Paulo. Na viagem de quinze dias tiveram tempo para brigar o suficiente para uma vida e, ao retornarem, se separaram. Sem explicações aos pais que aceitaram a decisão e até gostaram da volta dos filhos para casa.
Afinal, ele era feio, pobre, maconheiro - disse a sogra.
Afinal, ela era fútil, pobre e gorda.- disse a outra sogra.
Dez anos depois, o cara continuava feioso, mas tinha enriquecido. Ainda gostava de cannabis, mas tinha um repertório maior, que incluía cocaína e uísque. Marisa estava mais vaidosa. Agora, cultivava também do brilho da vaidade intelectual, era professora universitária e estava muito mais gorda. Tinha feito todos os regimes, até redução de estômago, mas não emagrecia.
"Ah e daí, se sou doutora nas ciências não tão ocultas do sexo', dizia para si mesma.
Conformada, assumiu suas grandes dimensões e dava gargalhadas redondas, gostosas, de provocar o sorriso de quem ouvisse. "O importante é ser feliz, curtir a vida", repetia à platéia de alunos fissurados. Enfeitiçados, sonhavam com aquela bunda imensa, com as montanhas de seios dignos de um filme de Fellini.
Claro que levou vários para cama e os iniciou nas artes do prazer, com o prazer de professorinha que ensina o beabá pra uma criancinha. Marisa tinha má fama na cidadezinha que encolheu com o passar dos anos. Cochichavam que era ninfomaníaca e ficavam excitados só de pronunciar o nome dela.
Enquanto isso, a gordíssima ria, gargalhava, oferecia colheradas de sorvete, fatias de bolo, doces, chocolates ao novo ficante; algum jovem bobo, cheio de espinhas e timidez, confuso com o as ereções precoces e sem saber como se relacionar com uma mulher . Sem problemas, Marisa ensinava. " Beija aqui, lambe aqui, chupa mais...só uma mordidinha não dói".
Perto dali, na esquina da praça, o ex se deliciava conferindo cheques e malas de dinheiro. O esquema de suborno funcionava bem e ele era o maior contrabandista da região. O pau já não funcionava direito, às vezes apelava ao viagra .
Às vezes, o casal se encontrava. Trocavam insultos e acusações como fazem os casais depois que desapaixonam. No meio da confusão, uma menina se esconde debaixo da cama e dentro dos armários para não ouvir o bate-boca dos pais.
A menininha crescia devagar, miúda, desajeitada, corria com garotos na escola, subia em árvores. Espiava no buraco da fechadura e descobria outros mundos. O mundo real dos adultos, com bundas em vaievem, gestos fora do cotidiano como abraços e beijos, bofetadas, segredos de família, o misterioso universo dos amantes.
A menina olhava como quem assiste a um filme e sonhava partir. Via os homens trazerem carros e caixas para seu pai. Assistia às estrondosas cenas de raiva de sua mãe.
Adorava quando Marisa esquecia a brabeza e se consolava falando de um novo amor comparando o sabor das frutas aos sabores dos beijos. "Boa de cama e mesa, em tudo há beleza", dizia.
A mãe era culta e tinha sensibilidade para a poesia, disso a menina gostava. Porém, mesmo gostando, se sentia do lado de cá de uma vitrine, como espectadora obrigada a fazer parte de um filme.
A menina queria partir.
Um dia, fugiu. Não foi longe. Foi trazida de volta, aos tapas. Tentou outras vezes, mais duas. Não conseguia passar na fronteira daquela cidade no cu do mundo. Estava presa àquelas vidas. Achou que era irremediável.
E foi assim... por causa destes porques que, aos dezessete anos, decidiu se casar.
julho de 2005