Na casa de uma tia, a imagem imã é a pintura da basílica
de Milão. Em uma parede, traços estilizados do olhar felino, na outra,
dramáticas pinceladas vigorosas, emocionais. Neida gosta de brincar com
a imaginação.
Aquele gato na sala dos avós é especial, uma diversão para
além das retinas, ele provoca a fantasia.
Há mais uma tela, a terceira. Esta é a mais misteriosa, um retrato
clássico atrás do enorme birô. O antepassado com sua pose cheia de autoridade
crava o olhar azul no do espectador e o acompanha. Aquilo impressiona
a menina, é feitiço, acha.
Também tem encanto nas brincadeiras do avô. Por exemplo, ele
aponta a chaminé do boteco, do outro lado da rua e pergunta por que aquele
leão está rugindo. Neida arregala os olhos crentes, examina e não enxerga
a fera.
Somente o triângulo sobre o telhado baixo. Ao fundo, o céu gaúcho
cortado pelo vento Minuano e a friagem. Em seguida, o silêncio da tarde é
estilhaçado pela risada do senhor bem-humorado.
“Você piscou. O bicho foi mais rápido”, lhe diz, sorrindo com os
olhos, de um outro azul mais brilhante. Neida não herdou a cor tão linda. A
preciosa herança foi gostar de imaginar, inventar histórias. Aprendeu com
ele a enxergar outra dimensão, o quase invisível, o avesso, a emoção de criar
e brincar com palavras e imagens.
Depois da sesta, pega na mão do avô, para irem buscar o pão de centeio
numa padaria que parece distante, lá em cima na ladeira. A herança alemã inclui
o deleite de comer cucas, um tipo de pão doce, com chá, à tarde.
Ele assobia baixinho canções que em vão a menina tenta reconhecer e
aprender. Quando Neida pede, o avô abre com a chave, na maior cerimônia, a
estante de livros e coloca nas mãos dela um exemplar de uma das enciclopédias.
Com a avó, descobre a alegria das miudezas, formas minúsculas e
texturas de linhas, lãs, miçangas, canutilhos. O corpo de delicados bordados,
desenhos de flores, caminhos da beleza sutil, filigranas femininas.
A vó Gracinha borda concentrada na cadeira de balanço, nas tardes
lentas. Ela também cultiva um jardim de pedras transparentes, translúci74
das. São cristais. Na liberdade de brincar dos seus dez anos, Neida os chama
de diamantes gigantes, coloridos, trazidos por fadas de algum reino.
Muitos anos depois, a região de Santa Maria da Boca do Monte será
conhecida por seu sítio arqueológico. Mas a pré-história, as pesquisas científicas
e as escavações ainda são assuntos desconhecidos naqueles tempos.
Fragmentos de uma civilização estão no pequeno quintal, entre chás e flores,
com a roupa estendida no varal. Canteiros e mistérios onde semeiam
afeto, criatividade.
A menina adora ficar perto dos avós, na paz da sabedoria de quem
viveu muito, escutando o portunhol, curtindo as manias. A mesa bem posta
na copa, decorada com toalhas de renda e crochê, faz parte do universo
de fazdeconta e os rituais da alimentação no horário, ao som do cuco na
parede, com a devida deferência, compõem o reino da harmonia.
Ao percorrer os caminhos do palácio, ao passar pelos salões reais,
Neida tenta evitar o olhar sisudo do ancestral pintado naquele quadro impertinente.
Mais tarde, saberá que é apenas um efeito produzido pela técnica,
mera questão de perspectiva.
A vida vai trazer muitas outras explicações lógicas. Apesar delas, a
sensação mágica permanecerá. Algo belo ainda inflama a imaginação de
adulta. Talvez seja o motivo desse jeito de olhar o mundo, de algo que a
move em direção ao prazer de viver.
Hoje, Neida chama isso de encanto poético. E sorri, com os olhos.
*Este texto faz parte do livro "Era Uma Vez....... Outra Vez....... mais uma vez .......e mais outra.......", de Nádia Timm.