Imprimir esta página
 Formada em Física, natural do Rio de Janeiro, Rose Marie Muraro nasceu em 1930, tem cinco filhos e 12 netos. Além de escrever obras instigantes, também se projetou como editora e palestrante em dezenas de instituições de ensino, nos EUA. Hoje, sua bibliografia reúne mais de 30 livros.foto Divulgação Instituto Cultural Formada em Física, natural do Rio de Janeiro, Rose Marie Muraro nasceu em 1930, tem cinco filhos e 12 netos. Além de escrever obras instigantes, também se projetou como editora e palestrante em dezenas de instituições de ensino, nos EUA. Hoje, sua bibliografia reúne mais de 30 livros.foto Divulgação Instituto Cultural
Publicado em Entrevistas
Lido 2284 vezes
Avalie este item
(1 Voto)

Entrevista com Rose Marie Muraro

A escritora Rose Marie Muraro foi destaque do Encontro Estadual do Proler de Goiás e da Semana Nacional do Livro e da Biblioteca, em outubro de 2000, quando tive a oportunidade de entrevistá-la. Os eventos contaram com o brilho da inteligência e da sensibilidade desta intelectual eleita nove vezes A Mulher do Ano, pelo Conselho Nacional da Mulher e que, em 2005, foi nomeada Patrona do Feminismo Brasileiro, pelo Congresso Nacional. Em Goiânia, Rose Marie Muraro fez palestra e lançou o livro Textos da Fogueira, publicado pela Editora Letra Viva. O público conheceu de perto a autora, admirada por sua capacidade de superação e que, apesar de quase cega, atuou com êxito, como escritora e editora, participando de movimentos sociais importantes como a Teologia da Libertação.
Durante 17 anos, ela trabalhou ao lado de Leonardo Boff, na Editora Vozes, de onde foi expulsa por causa de suas idéias: em 1986, foi afastada da pelo Papa, depois de publicar Por uma Erótica Cristã.
Formada em Física, natural do Rio de Janeiro, Rose Marie Muraro nasceu em 1930, tem cinco filhos e 12 netos. Além de escrever obras instigantes, também se projetou como editora e palestrante em dezenas de instituições de ensino, nos EUA. Hoje, sua bibliografia reúne mais de 30 livros.
Nesta entrevista exclusiva, a escritora fala sobre sexualidade e poder. Otimista, considera que a nova geração tem uma nova estrutura psíquica e que um mundo novo está nascendo. Segundo ela, o pós-patriarcado já chegou.

 

 


NT – O livro Textos da Fogueira relaciona sexualidade e poder. De
que forma se dá essa relação?

RM - Há oito mil anos, a sexualidade é o pior dos pecados. Desde o Gê
nesis, quando Eva separou o homem de Deus por causa do ato sexual, o
prazer é considerado o pior dos pecados.
E não é só o cristianismo, é em todas as culturas. A mulher é considerada
a grande pecadora e, portanto, a escrava. Aquela que tem de
fazer o duplo trabalho. A culpa do homem é uma só: ter desobedecido
a Deus. A mulher tem duas culpas, ter desobedecido e ter feito o
homem desobedecer. Por isso, ela é mais culpada e tem de ser mais
castigada.


NT – Como isto se revela historicamente?
RM – Enquanto a sexualidade era o maior dos pecados, o poder era
considerado vindo do sagrado. Toda pessoa que está no poder é Deus,
filho de Deus ou uma encarnação de Deus. O poder tem direito divino,
como nos reinados do cristianismo. Então, se o poder é sagrado, toda
opressão e guerra são justas.
Onde está o pecado? Na sexualidade. Isso vem vindo até a Idade Média,
quando se chega ao fundo do inferno, com a caça às bruxas.
Todas as mulheres que têm o imundo orgasmo, entre aspas, como o inquisidor
diz, são cúmplices de satanás. Aí a sexualidade ficou satanizada,
começou a perseguição às bruxas que não tem paralelo na história.


NT - De que forma o tema é abordado no livro?
RM - A metade deste livro eu dedico à história Martelo das Feiticeiras,
que é o livro mais sinistro de todos os tempos. Eu ponho os demônios
literalmente para fora. Mostro como eles tinham a noção da mulher
como causa de todos os pecados.
Chegam a dizer que se não existisse a mulher, o coito seria muito mais
interessante. Coisas neste gênero. Que a mulher é a grande pecadora,
que Jesus quis nascer homem, que a mulher não pode ser reta porque
nasceu de uma costela torta de Adão...


NT – São as raízes do machismo?
RM - Do patriarcado. O machismo é baseado nisso. São os problemas de
fundo da condição da mulher. Os textos do Martelo são fantasticamente
terríveis. Mostram que a mulher copula com satanás.
Diziam, por exemplo, que as bruxas ao serem torturadas não choravam
e que era o demônio quem colocava água em seus olhos. Por isso o meu
livro se chama Textos da Fogueira.
Eu me defino como bruxa, como mulher orgástica e independente.
Como todas nós, hoje. Se o inquisidor voltasse agora teria de matar a
metade da humanidade. Todo mundo trabalha fora hoje e tem orgasmo.



NT - Como foi esse processo de libertação dos preconceitos?
RM - Este livro Martelo das Feiticeiras, o mais sinistro de todos os tempos,
que tive a honra de publicar no Brasil, gerou no século 19 a libertação
da mulher e muito mais no século 20.
Por causa desse livro, que influenciou muito, as mulheres entraram em
pânico. Não podiam aprender a ler, não herdavam... No século 19, na
revolução industrial começam a trabalhar... E no século 20, querem a
metade do poder.
Quando o feminismo emerge como sujeito da história, a sexualidade
deixa de ser pecado. Então é feita uma leitura do Evangelho mostrando
que Nosso Senhor Jesus Cristo vivia entre mulheres promíscuas, adúlteras,
prostitutas. No meio dos sodomitas. Todos estes, ele dizia, que iriam
para o céu antes dos outros.



NT – Sexo e poder estão assim tão intimamente relacionados?
RM – Tudo isso é uma metáfora para mostrar que a satanização da sexualidade
através do sagrado é para dizer que o poder, o genocídio e a
guerra são justos.
As piores guerras do todos os tempos são as guerras religiosas, do sagrado.
Se você tirar o caráter do pecado da sexualidade, imediatamente o
poder aparece com a face satânica. Daí essa resistência à globalização, à
virada do Brasil para a esquerda em busca de justiça.
As pessoas não podem mais chamar o sagrado como desculpa para fazer
genocídio e guerra. Eu mostro no livro que satanás é o poder e não
a sexualidade.

 


NT – Dizem que as pessoas que têm mais poder são mais dotadas de
serotonina, a substância que proporciona prazer. Isso seria uma confirmação
de que o poder é afrodisíaco?

RM – Não sei se as pessoas que estão no poder têm mais serotonina.
Isso eu quero aprender. Olha que eu entendo à beça de química no cérebro.
Não sabia tinham mais serotonina, sei que têm mais adrenalina.
São mais ansiosas, estressadas...



NT – Como avalia a situação da mulher hoje?
RM – Quando a sexualidade era sombra, o poder era luz. Agora que a
sexualidade é a luz, o poder vai para a sombra. O poder tem a ver essencialmente
com a condição da mulher.



NT - Depois da revolução sexual dos anos 60, com o surgimento da pílula,
a mulher conquistou mais liberdade para assumir seus desejos.
Mas o que se vê ainda, em algumas regiões, é uma retomada de valores
tradicionais, a manutenção da dicotomia santa-prostituta... Por quê?

RM - Isso só ocorre nas sociedades mais fechadas do Brasil. Mas você vê
mulheres com possibilidade de se candidatarem à Presidência da República,
tanto no Brasil quanto nos EUA.
Os EUA têm quase 50 milhões de feministas, elas são quase a metade
do poder. No Brasil, são 10 mil e ganhamos 60% pelo mesmo trabalho
que o homem faz. Ainda somos muito atrasados. Embora tenhamos um
modelo dos excluídos que é único no mundo, do MST, das Comunidades
de Base que estão organizando aqueles que o sistema joga para fora.


NT – O aborto ainda é um tabu na sociedade contemporânea. Nas
eleições, por exemplo, o discurso conservador tira vantagens da condenação
do aborto. De que forma os movimentos de liberação da
mulher tratam a questão?

RM – A Igreja aceitou o aborto por 15 séculos dizendo que enquanto
não houvesse alma no feto – no feto masculino era aos 40 dias e no feto
feminino, aos 80 dias – o aborto não era pecado. Só era pecado mortal
quando o feto estivesse feito. Isso foi do século 4 ao 19.
Só quando a Igreja perdeu os Estados pontifícios, quando perdeu o poder
temporal o aborto voltou a ser crime hediondo. O mesmo ocorreu
com os protestantes. A partir de quando eles tiveram poder, no século
19, abriram espaço para o aborto.
O aborto é um problema de poder, de controle da sexualidade feminina.
Não é um problema teológico. Ainda há muita discussão sobre quando
tem alma, sobre o que é ser pessoa. Quem aceita a pena de morte não
tem autoridade moral para ser contra o aborto.
Toda patroa que pede empregada sem filho, se a empregada aborta, essa
patroa é a culpada. Se uma sociedade pede para uma mulher não conceber,
se no seu emprego pede atestado de laqueadura de trompas, o culpado
pelo genocídio é a empresa. Não é da mulher, a culpa é da sociedade
inteira!
E quem não tiver pecado que atire a primeira pedra.



NT – Quais os movimentos fortes de liberação da mulher no País,
hoje?

RM – As mulheres dos partidos de esquerda se definem hoje como feministas.
O feminismo nada mais é do que a organização do feminino.
É um sindicato, nada mais. E como diziam que os sindicalistas comiam
criancinhas, dizem que as feministas comem criancinhas. É porque elas
querem acabar com o patriarcado.



NT – O capítulo final de seu novo livro é sobre o pós-patriarcado. A
senhora fala de uma nova estrutura psíquica de homens e mulheres.
O que está acontecendo?

RM – A estrutura psíquica do patriarcado é assim: o pai lá em cima, fazendo
dinheiro, e a mãe embaixo, fazendo todo serviço de casa. O pai
mandando, a mãe obedecendo. O pai batendo, a mãe apanhando.
Então, o menino se identifica com o opressor e a menina com a oprimida.
Quando a mãe passa a trabalhar, não há mais essa estrutura. O pai
ajuda a cuidar dos filhos, que não veem mais a relação opressor-oprimida.



NT – Darcy Ribeiro dizia que no Brasil as mulheres eram as cabeças
da família há muitas décadas. Como o patriarcado está sobrevivendo?

RM – Já estamos no pós-patriarcado. Ele começa só quando a tecnologia
estava suficientemente desenvolvida para existir o trabalho do homem
na rua e o da mulher em casa.
Isso foi há oito mil anos. A mulher fica dependente material e psicologicamente
do homem. Agora acaba o patriarcado, porque para cada homem
que trabalha existe uma mulher que trabalha.
O pós-patriarcado começou há uns 25 anos. Mas é preciso mudar o
mundo para isso. É preciso mudar as leis, o Estado. Transformar o
meio ambiente. Se a mulher não atuar, acaba a espécie, porque a mulher
foi socializada no patriarcado para ser altruísta e o homem para
ser egoísta.
Agora isso se rompe. Quando não existe dominador, nem dominada, os
dois voltam a ser altruístas, como no mundo antigo. Daqui a uma geração,
não tenho dúvida, teremos a metade do poder, já está muito avançado
esse processo.



NT – Hoje a mulher tem o poder econômico e meios de concepção
que poderiam assegurar acesso mais livre ao sexo. No entanto, isso
não funciona. De que maneira o desejo pode ser assumido de forma
mais igualitária?

RM – Isso ocorre nas sociedades mais fechadas. No Rio de Janeiro e em
São Paulo, por exemplo, a mulher tem acesso livre ao sexo sim, nem precisava
tanto. A mulher tem de trabalhar a autoestima.



NT – Até que ponto o desejo sexual está vinculado à afetividade?
RM – Tudo é um problema de autoestima. Imagine se as norte-americanas
têm problemas...



NT – Há uma forma de a mulher assumir sua sexualidade sem culpa?
RM – Tem de haver. Só com alta autoestima. Só constatando que a sexualidade
não é pecado e que a culpa é uma fantasia infantil. A gente sabe
isso desde Freud.
Nas religiões, a culpa se pagava com oferendas, depois com sacrifícios
humanos. No cristianismo, só pode ser paga com o próprio sacrifício,
depois da morte. A gente descobriu no século 19 que a culpa é infantil e,
com o feminismo, que a culpa está com os sinais trocados.



Esta entrevista faz parte do livro Incondicionalmente Livre, em breve, nas melhores livrarias do Brasil.

Última modificação em Quinta, 18 Agosto 2016 17:34
Add to Flipboard Magazine.