O telefone em silêncio, o Sol morno aquecendo as manhãs claras de um inverno no sertão. Nada a fazer. Marisa tem tempo para pensar na vida. Para completar a tranquilidade, a mãe louca está distante. O namorado pirado, também. Sua vida imersa na paz. Pode tagarelar à vontade com seu novo amigo na Internet, um belo italiano encantado pela palavra Brasil.
Poderia entoar uns mantras, queimar um incenso, curtir uma erva à vontade. Pouco ligava se havia uma pilha de jornais se amontoando à sua volta. Estava de férias do mundo e com vontade de transformar esta folga toda em período de descanso para sempre, perpétuo.
Que vida boa ser funcionária pública! Nenhum memorando, nada de ofícios, agenda zero. Havia decretado o fim das chatices burocráticas. De braços cruzados, descobriu que o mundo girava muito bem sem ela. Não queria mais o título de funcionária padrão. Nem se importava em ser produtiva, eficiente, competente. Tinha chegado ao limite. O homem do bigode de gabinete esquecera de persegui-la.
A secretária gorda desistira de cobrar os minutos de atraso, e ela, apesar dos medos, tinha decidido cruzar os braços... E cruzar o oceano. Andava com o guia de Paris na bolsa, alucinada com as possibilidades. No Jardin des Tuileries, o ritual de percorrer o traçado. A gloriosa geometria do jardim de Versalhes. Imaginava Luiz XIV, o Rei Sol, como seu delicioso amante, fazendo amor à francesa, sem expor o corpo, veladamente gozava, ai, ai. Faz o percurso da Pont de l’Alma a Pont Sully.
Passa de um lado ao outro do Sena, está quase na hora do almoço. Rive Droite, Rive Gauche, capricha no sotaque. Lembra que Paris ainda é uma festa, e de Hemingway. Recorda, também, o tal namorado que mal sabe português e escreve viagem com jota, no Orkut, e excitado sem o “x”, quando tecla no MSN. Não se fazem homens como antigamente, suspira. Luiz XIV de peruca e salto alto devia provocar mais orgasmos do que os brucutus do século XXI. Como pode sentir tesão sem o prazer erótico da palavra, sem os contornos luxuriantes da sedução. Das pontes de Paris às pinguelas de Goiás. Homens-bois, rústicos, com seus grandes e inúteis pintos.
Marisa debruça sobre as fotos do bar do Ritz. Aqui, bem aqui, era ponto de encontro de Zelda e Fitzgerald. Aqui, bem aqui, terá um encontro, num dia chuvoso. Pedirá o Kir, um copo de vinho branco com licor de cassis. Parece que a fome está apertando, falta pouco, logo sairá para almoçar. Quer ficar só, ultimamente quer muito a solidão e o silêncio.
Atravessa a rua do Claustro de Notre-Dame e entra no adro da igreja, voltou ao século XIII. Desce a escada que leva à Cripta Arqueológica. Vê as ruínas da antiga Lutécia, a cidade galo-romana. Embora imóvel, ela vai. Atravessa o mar, o tempo. É agora uma francesa, é outra mulher. Está na legião dos miseráveis de Victor Hugo, pedindo esmolas, um eurozinho.
Percorre o metrô com o olhar, há suicidas, desempregados, mendigos. Depois, flutua sobre Paris, no cinza repara nas ruínas e folhas amarelas. Ofuscada pela beleza perambula na paisagem imaginária. O dia termina, as luzes começam a se acender. Tons de rosas e amarelos, Paris está iluminada como um palco, mais linda ainda. Marisa está atenta à rua, à visão que a puxa para um mergulho. Senta à margem do Sena, toca a face de algum outro universo ou dimensão. Não percebe diferença entre segundos e séculos, mas precisa voltar. É meio-dia, tem de bater o ponto.
De volta, guarda o livro na última gaveta.
*Este conto faz parte do livro "As Novas Histórias de Amor", de Nádia Timm.